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quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Conto - Exílio

Oi gente! Eu queria pedir desculpas por não estar postando muito. Estou em semana de provas na faculdade e não ando tendo tempo pra ler. Mas eu não me esqueci de vocês ^-^ Então dessa vez vou deixar aqui um conto que eu escrevi há algum tempo. Espero que gostem! Beijão

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EXÍLIO
de Deleon Fernandes

Eu já não sabia o significado da palavra luz. A escuridão naquela cela era muito pior daquilo que eu via quando fechava meus olhos na hora de dormir. Tanto tempo trancada naquele cubículo negro foi mais que suficiente pra eu me esquecer de como um dia já fora o brilho do Sol. Sol... talvez jamais eu sentisse seu calor, visse sua luz. Mesmo ali, amarrada, num canto junto ao chão enquanto o suor e sangue se misturavam sobre meu corpo, os músculos labiais se comprimiam no que, talvez, se aproximava de um sorriso. As lembranças eram inevitáveis. Não, as lembranças eram tudo o que eu tinha, só isso. E sobre a cegueira obrigatória me vinham imagens daquela menina correndo na praia atrás de uma bola de pelos negros. Eu me perguntava quando foi que aquela menininha tão doce, inocente, se transformou nisso aqui. Parecia que foi ontem, e ao mesmo tempo que foi há tantas eras, que eu corria na praia, fugindo das ondas geladas. Kevin, o cachorrinho dado pela minha avó que morava longe, latia e corria ao meu lado, se divertindo, enquanto meus pais tomavam observavam sentados na areia. Há tanto tempo.
Um barulho soou pela minha cela. Logo, passos foram crescendo e reverberando nos meus ouvidos acostumados com o silêncio mortal que reinava. Passos pesados, com certeza mais de uma pessoa. Depois de dias presa, amarrada e machucada, sem ver ou ouvir nada, finalmente um sinal de que aquilo era real. Aquele pesadelo realmente existia. O som que podia ser um sinal de esperança, trouxe à memória todo o terror que havia passado. Mas o que estaria acontecendo? Pensei que ia ficar jogada ali até a morte. Na verdade, estava torcendo pra que este dia chegasse logo, quando finalmente fosse parar de respirar e, quem sabe, acordar em um lugar melhor. No entanto, junto com os passos pesados agora eu podia ouvir vozes. Vozes masculinas, falando alto em um idioma desconhecido. Estava ficando mais alto... Estavam chegando mais perto... Mais perto... Pararam. Silêncio.
A dor que eu senti quando abriram a pesada porta de ferro foi extasiante. Na escuridão, não percebi que meus olhos estavam abertos e quando a porta foi arrastada uma luz intensa e quente queimou minhas pupilas. Fiquei cega por vários minutos, tentando me acostumar com a luz, enquanto dois homens, presumi, me agarravam pelo braço, me desamarrando e então me arrastando pra fora da cela. Eu não tinha forças pra sequer me manter de pé, e senti minha respiração falhar à medida que era carregada por um longo corredor. Quando finalmente consegui abrir os olhos, a fraqueza mantinha minha cabeça abaixada, me permitindo ver somente minhas pernas cobertas de hematomas, enquanto um corte na altura da cintura fazia um pequeno filete de sangue escorrer. Meus seios descobertos exibiam cicatrizes e mais cortes profundos e arroxeados. A cada centímetro que eu me movia podia sentir o gosto de sangue na boca. Até que paramos. Os dois homens me jogaram no chão, a dor nos ossos e músculos me atingindo por completo. Eu tentei mover minha cabeça pra ver os rostos, mas não tinha forças. Só ouvi mais vozes discutindo, e um par de sapatos brancos e brilhantes caminharem em minha direção. Então, uma mão tocou meu ombro, e por um segundo eu senti uma compaixão vinda do dono dos sapatos. Em seguida fui erguida e posta em uma maca onde, deitada de barriga pra cima, senti novamente o Sol, brilhar sobre mim.

Eu não entendia aquilo tudo. Pra mim, minha sentença já havia sido decretada e eu morreria naquela cela minúscula dominada pela escuridão. Pelo jeito eu estava errada. Era improvável que eu seria liberta, que teria uma nova chance. Não, eles nunca fariam isso. Não seriam tão bons a esse ponto. Mas ali estava eu.
Enquanto era movida na maca, adormeci. Ou desmaiei, não sei ao certo o que houve. Mas fechei os olhos sob o céu e quando abri novamente, estava deitada em um colchão com lençóis extremamente brancos. Havia um lençol sobre meu corpo ainda nu, tão branco quanto o colchão. Aos poucos eu fui reunindo coragem pra mexer a cabeça e tentar ver onde estava. O teto que caía sobre mim era branco, assim como as paredes à minha volta, alvas como a neve que acumulava na casa de inverno de minha avó. Tanto branco me lembrou os feriados que passava naquela casa, o chá quente antes de dormir e as mãos reconfortantes daquela idosa a quem eu tanto amava. Não saberia dizer onde ela estava hoje, assim como qualquer membro de minha família. Fazia tanto tempo que não os via, nem sei quando foi a última vez. Eu fechei os olhos, revivendo as lembranças que ainda guardava. Era uma batalha constante não perdê-las pelo medo que me ocorria a todo instante, mas eu não as perderia, eu não as deixaria ir. Eu me concentrei, tentando lembrar de uma data específica, mas fui interrompida por um ruído abafado. Eu olhei à minha esquerda e vi, no chão, uma bandeja fechada. Um tanto receosa, levantei da cama baixa deixando o lençol cair. A visão do meu corpo destruído me causou náuseas, mas mantive a cabeça erguida olhando a minha frente. Aos poucos consegui andar até a bandeja e, quando abri, senti um arrepio na espinha de prazer. Um prato fundo guardava um liquido escuro, provavelmente uma sopa. Tomei a colher que estava ao lado do prato e levei à boca a primeira refeição em dias. Várias colheradas de uma vez só, sentindo aquele calor descer até meu estômago, e logo já havia chegado na metade do prato. Até que minha garganta rejeitou uma colherada e eu vomitei parte do que já tinha comido. Fazia muito tempo que não comia nada e agora tinha engolido tudo de uma só vez. Mas eu não me importava, a fome era maior do que qualquer outro sentimento. Eu mergulhei a colher novamente, que preencheu-se de sopa e vômito, e forcei-me a tomar tudo. Em poucos minutos restava apenas um prato vazio, enquanto eu sentia o vômito voltar a minha boca mas me forçava a engolir de volta.
Voltei pra cama e permaneci sentada. Olhei ao meu redor e não vi nenhuma câmera, espelho ou parede de vidro, nada que me indicasse estar sendo observada. Fiquei ali esperando algum sinal, alguma voz, mas não houve nada. Não apareceu ninguém. O tempo foi passando e comecei a me sentir entediada. Fazia horas que estava ali, talvez mais uns dias ou apenas minutos, e eu continuava sem entender o que estava ocorrendo. Até que, num momento em que estava de pé num canto, uma porta se materializou na parede à esquerda da cama. De pé, do outro lado, estava uma mulher, morena, em um vestido azul bebê. “Vamos.” Ela disse, enquanto um sorriso triste se formava em seus lábios. Eu, ridiculamente, por alguns segundos, me senti constrangida pela falta de roupas, mas não havia escolha. Eu movi minhas pernas fracas e lentas na direção daquela figura um tanto celestial.

A mulher de cabelos negros me levou por um corredor silencioso e igualmente branco, até chegarmos num elevador de vidro. Ela apertou o botão do andar e percebi que havia estado a vários andares abaixo do solo. Quando o elevador parou, seguimos por mais um corredor, este equipado com grades a cada dez metros, e um par de seguranças numa porta ao fundo. Estes se afastaram da ultima porta quando viram a mulher, e nós entramos no que parecia ser um hall de entrada antigo. Eu arrastava meus pés a fim de acompanhar os passos da moça, mas era difícil pisar no chão sem sentir dores internas. Talvez tivesse com algum osso quebrado. Entramos por mais uma porta e eu percebi que sangue escorria por entre minhas pernas. Quis falar com a mulher, mas tive medo, ou talvez vergonha. Mantive minha cabeça baixa por todo o percurso. Enfim chegamos a uma sala ampla com várias macas e outras duas mulheres no mesmo estado que eu. Elas estavam de pé, distante uma da outra, com um olhar assustado e embaraçoso no rosto. Eu entrei no local e não olhei diretamente pra elas, com vergonha. A moça de vestido azul que estava comigo falou. “Vocês irão vestir essas roupas que estão sobre as macas e aguardar. O transporte chegará em breve.” E saiu, fechando a porta atrás de si. Eu demorei a raciocinar um pouco, e então obedeci a mulher. As outras duas seguiram meu ato. O traje era uma calça larga verde, uma regata preta e uma jaqueta também verde. O tecido era quente e em uns minutos comecei a sentir calor. Quando já estávamos todas vestidas e aguardávamos, a mulher mais afastada começou a chorar. Ela tinha a cabeça raspada e um olho roxo, e soluçava em silencio. A outra mulher olhou pra mim com medo mas não disse nada. Eu levantei a mão e toquei minha cabeça. Havia umas falhas, mas meu cabelo ainda estava lá.
Eu quis falar alguma coisa, perguntar alguma coisa, mas as palavras não vieram. Minha cabeça ensaiava perguntas mas os lábios não se moviam. Eu só queria entender aquilo tudo. O por quê daquilo tudo.
Após o que pareceram horas, a porta da sala abriu novamente e dessa vez um homem aguardava do outro lado. Ele era alto e vestia um uniforme imponente. “Pra fora.” Ele disse, e nós três saímos em seu encalço. Andamos por um outro corredor e entramos em outro elevador de vidro. Dessa vez, o homem apertou um botão mais próximo do topo. Quando as portas se abriram, demos de cara com uma nave gigantesca. Ao redor dela, empregados corriam de um lado pro outro e num canto, diversas pessoas, vestidas como eu e as outras duas mulheres, se organizavam em várias filas. Homens e mulheres, com as mais repulsivas cicatrizes e feridas aguardavam orientação. Eu me juntei a eles, enquanto outros homens uniformizados riam e nos insultavam no idioma desconhecido. Um deles chegou mais perto e cuspiu no primeiro da fila, seus companheiros rindo. O homem humilhado apenas abaixou a cabeça. Era somente isso que ele podia fazer. Era só isso que todos nós prisioneiros, torturados e humilhados podíamos fazer. Afinal éramos todos criminosos, não? Presos por tentar defender nossa liberdade que vinha se perdendo.  Mas segundo estes homens, uniformizados e protegidos pelo poder, nós éramos o inimigo.
Uma sirene tocou e fomos todos empurrados pra dentro da nave, subindo a rampa de ferro. Chegamos à área dos passageiros e fomos sentados, presos por cintos de segurança. Em alguns minutos depois, o motor da nave ligou, em um estrondo abafado e em seguida já estávamos voando.
Eu não sei por quanto tempo ficamos no ar, mas pareceu o bastante. No trajeto, muitas pessoas choravam. Outras, assim como eu, apenas fiavam em silencio. Não havia janela ou nenhuma iluminação, e mais uma vez a escuridão caía sobre mim. Até que eu respirei fundo e deixei meu corpo relaxar, caindo no sono.
Quando despertei, os homens uniformizados estavam gritando conosco e nos puxando pra fora dos assentos. Uma mulher se assustou e caiu no chão, o homem de uniforme esbravejou sobre ela e deu vários chutes em seu peito. Eu não a vi na saída da nave. Mais uma vez eu pude sentir o Sol sobre minha pele, quando todos nós já estávamos do lado de fora. Eu não reconheci aquele lugar, mas fomos deixados no meio de uma floresta, aos pés de uma montanha. Os uniformizados desceram da nave e dessa vez distribuíram varias bolsas de mão, uma pra cada prisioneiro. Quando terminaram de entregar, voltaram pra nave e subiram a rampa. Em segundos já estavam voando no céu.
Todos nós ficamos sem saber o que fazer. Ninguém se conhecia, o medo era o único sentimento em comum entre nós. Eu sentei no chão gramado e abri a minha bolsa. Ela continha vários objetos que eu nunca tinha visto. Talvez fossem aparatos daquela tecnologia nova que os próprios homens de uniforme usavam, mas eu não entendia nada daquilo. A única coisa que eu reconheci foi uma seringa. Um liquido âmbar balançava dentro dela, talvez algum remédio. Eu não entendi nada. Olhei ao redor e vi aquelas pessoas desnorteadas, em prantos, implorando a morte ou a salvação. Eu, porém, ergui os olhos pro Sol e agradeci poder sentir aquele calor novamente. De súbito eu me levantei e tive uma ideia. Estávamos ao pé de uma montanha e poderia ser longe, mas eu não me importava. Comecei a caminhar, arrastando meus pés cansados e fracos por entre as folhas verdes e fui entrando na floresta.  Andei mais um pouco, até sentir o suor brotar em todos os poros de minha pele. Arranquei minha jaqueta e a larguei no matagal à minha volta. E caminhei. Por horas talvez, eu segui andando, mergulhando por entre as arvores selvagens e suas raízes contorcidas. Depois de mais um tempo eu avistei o que suspeitava.  Comecei a correr, ignorando as dores e o sangue que mais uma vez brotava de mim, e corri, e corri mais ainda. As lágrimas enfim nasceram nos meus olhos feridos e jorraram pelas minhas bochechas da mesma forma que as ondas do mar à minha frente banhava a areia fofa. Eu corri e me deixei cair na areia, sentindo cada grão, e me arrastando até chegar na água fria. Por um momento eu fui novamente aquela menininha inocente que corria com seu cachorrinho na praia, e me deixei chorar, e rir e chorar mais ainda à medida que as ondas me engoliam.

O Sol brilhava e as nuvens rodopiavam a sua volta, enquanto meu corpo jazia naquelas águas purificadoras. Já não havia dor, sangue ou machucado algum. Eu me deixei levar até não aguentar mais, até não ter mais forças e finalmente poder me entregar. Eu não entendi o por quê de todo o sofrimento que me fizeram passar, nem o que eles tinham em mente ao me deixar ali, mas eu finalmente encontrei uma chance de me libertar daquele inferno. Eu abri os braços e as ondas me carregaram, me puxando num abraço de salvação mortal, enquanto meu corpo repousava tranquilamente numa paz eterna.

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